Veneno de cobra: uma cura inesperada?
Escrito e verificado por a bioquímica Luz Eduviges Thomas-Romero
Você tem medo de cobras? Atualmente, são conhecidas cerca de 3000 espécies delas. No entanto, o veneno de apenas 450 espécies é potencialmente perigoso para os humanos.
Mesmo assim, as picadas de cobras matam cerca de 100 mil pessoas por ano, principalmente na Ásia, África e América Latina. Contudo, apesar desse registro infeliz, o veneno de cobra também foi usado em descobertas médicas que podem salvar vidas humanas.
É importante destacar que cada espécie de cobra desenvolveu seu veneno para atingir uma especificidade requintada em relação a diferentes fraquezas de suas presas ou predadores. Assim, a ciência com a sua expertise tenta desvendar as fórmulas que a natureza aperfeiçoou a fim de usá-las na medicina.
Defesa e predação
É importante destacar que um veneno contém centenas de componentes diferentes. Assim, esse composto é uma mistura complexa de componentes farmacologicamente ativos.
A natureza do veneno varia de acordo com cada espécie. E mesmo dentro de cada espécie sua composição muda ligeiramente de acordo com a distribuição geográfica, a idade, o sexo e a dieta do animal. Já os componentes do veneno têm diferentes funções:
- Por exemplo, algumas toxinas têm como alvo o sistema nervoso e são chamadas de neurotoxinas. É comum que as neurotoxinas impeçam a transmissão de sinais ao cérebro, causando paralisia.
- Outras, chamadas de hemotoxinas, afetam o sistema circulatório e podem causar o rompimento dos glóbulos vermelhos ou a coagulação do sangue. Também podem fazer com que a pressão arterial caia significativamente.
- Por outro lado, existem as miotoxinas, que danificam o sistema muscular. Essas toxinas causam a morte dos tecidos dos músculos e evitam a contração muscular, causando a necrose do tecido.
O veneno de cobra como remédio
De acordo com vários estudos, as toxinas do veneno de cobra evoluíram ao longo de milhões de anos para atingir uma função específica. Os cientistas tentam isolar e ajustar ligeiramente esses componentes, a fim de usá-los como base para novos medicamentos eficazes.
A magnífica seletividade é uma vantagem dessas toxinas para o seu uso como possíveis terapias, uma vez que isso minimiza a possibilidade de efeitos colaterais indesejados. Além disso, dada a sua potência, mesmo pequenas quantidades podem ter efeitos significativos.
Atualmente, existem inúmeras possibilidades de novos medicamentos, tais como analgésicos e tratamentos para o diabetes e até mesmo para o câncer. No momento, são usadas drogas derivadas de toxinas modificadas.
De acordo com os especialistas, estima-se que cerca de 20 milhões de toxinas permaneçam inexploradas na natureza.
O conhecimento milenar no uso do veneno de cobra
Durante milhares de anos, os componentes do veneno de cobra foram usados como ferramentas médicas na medicina Ayurveda, na homeopatia e na medicina tradicional/popular.
Além disso, as cobras eram consideradas o deus da medicina no mundo grego antigo. De fato, o símbolo da cobra ainda é usado atualmente para a medicina e a farmácia.
Na medicina Ayurveda, o veneno de cobra era usado para tratar a dor, a inflamação e a artrite. Além disso, durante séculos, o veneno de cobra foi usado pelos chineses para tratar o vício em ópio. Por outro lado, os indianos o combinavam com o ópio para tratar a dor.
Vários medicamentos derivados do veneno de cobra são usados no mercado
Apesar do imenso foco global no uso de toxinas venenosas para o desenvolvimento de novos medicamentos, isso só levou poucos medicamentos ao mercado. Muitos desses compostos inibem a coagulação do sangue de diferentes maneiras e são usados como tratamento contra o infarto:
- A partir do veneno da víbora brasileira Bothrops jararaca surgiram o captopril, a exenatida, a liraglutida e a eptifibatida. Esses medicamentos são usados para tratar a hipertensão e a insuficiência cardíaca congestiva. O captopril foi o primeiro medicamento obtido a partir de um veneno, no final dos anos setenta.
- Um derivado do veneno da cascavel-pigmeu do sudeste, Sistrurus miliarius barbouri, é usado para prevenir a isquemia cardíaca aguda.
- A partir da víbora Echis carinatus é produzido o medicamento tirofibana, um inibidor da agregação plaquetária.
- A partir da purificação do veneno da espécie Bothrops moojeni é produzido um medicamento usado para tratar o infarto cerebral agudo, a angina de peito e a surdez súbita.
- Um fator pró-coagulante purificado do veneno de Bothrops atrox é usado para o tratamento de hemorragias de diversas origens.
Uma fonte de novos analgésicos?
As toxinas de cobras também têm o potencial de se tornarem novos analgésicos. A toxina crotalfina, do veneno da Crotalus durissus, é capaz de induzir analgesia por meio da modulação de receptores de opioides.
Em 2012, um grupo de pesquisadores encontrou peptídeos com efeito analgésico no veneno da mamba negra, Dendroaspis polylepsis. Essas toxinas, que foram denominadas mambalginas, atuam bloqueando os canais iônicos nos neurônios que transmitem a dor.
O estudo levou a um interesse renovado pelos canais iônicos como um alvo terapêutico. Ao contrário de drogas como a morfina, as mambalginas têm a vantagem de permanecerem eficazes mesmo com o uso contínuo. Essas toxinas aumentam a esperança de desenvolver uma alternativa à morfina que não seja viciante.
As toxinas de três dedos protagonizam novas descobertas
É muito interessante saber que certas toxinas proteicas em muitos venenos de cobra têm uma estrutura molecular particular. Por isso, elas são conhecidas como “toxinas de três dedos” (TFT, na sigla em inglês). Frequentemente, essas toxinas correspondem aos componentes mais ativos de cada veneno.
Esse grupo de toxinas já é utilizado graças à sua atividade nos vasos sanguíneos. Por exemplo, a toxina muscarínica (MTα) é usada em distúrbios da pressão arterial. Outras são usadas em patologias da coagulação do sangue, como a toxina KT-6,9.
Atualmente, são conhecidas mais de 700 sequências proteicas de TFT e novos membros são adicionados a cada dia.
Além disso, na última década, ocorreram novas descobertas em TFTs, incluindo variações estruturais e novos tipos de atividades biológicas para TFTs já conhecidas. De fato, algumas dessas atividades inesperadas foram:
- Interação com receptores de fatores imunológicos.
- Atividade sobre o receptor de insulina (cardiotoxina 1), o que confere um uso potencial contra o diabetes tipo 2.
- Ativação da motilidade espermática (Actiflagelin) com uso potencial para o tratamento da infertilidade masculina.
Uma ferramenta inesperada
O veneno de cobra é uma ferramenta muito poderosa, útil para o animal, mas também para os tratamentos médicos. Espera-se que o desenvolvimento de novos antivenenos diminua o número de pessoas que morrem por causa de picadas de cobra.
Além disso, a descoberta de medicamentos de última geração poderia combater ataques cardíacos, acidentes vasculares cerebrais e até mesmo o câncer. Tudo isso pode depender dos segredos ocultos contidos no veneno de cobra.
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