Venenos como medicamentos: poder peçonhento

Os venenos apresentam uma variedade incrivelmente complexa de compostos desenvolvidos ao longo de vários milênios de evolução. Cerca de 100 000 animais, desde lagartos e serpentes até anêmonas-do-mar e águas-vivas, produzem venenos.
Venenos como medicamentos: poder peçonhento
Luz Eduviges Thomas-Romero

Escrito e verificado por a bioquímica Luz Eduviges Thomas-Romero.

Última atualização: 27 dezembro, 2022

Os venenos dos animais são armas eficazes de defesa ou de ataque que permitem imobilizar e/ou digerir a sua presa. De fato, esses compostos são misturas complexas de moléculas com funções muito diversas e específicas.

Durante milhares de anos, os venenos de cobra foram usados ​​como ferramentas terapêuticas, especialmente na medicina tradicional chinesa. De fato, os venenos de cobra são considerados bibliotecas de fármacos e o seu repertório é tão vasto que menos de 0,01% dessas toxinas foram identificadas e catalogadas.

Prevenir a coagulação na presa é um truque escondido no veneno de muitos animais

É comum que alguns dos componentes do veneno de vários animais existam peptídeos ou substâncias com efeito antiagregante plaquetário. Por essa razão, eles exercem o efeito de retardar a coagulação do sangue.

Assim, foram descritos compostos como a apitoxina no veneno das abelhas. Além disso, existem elementos semelhantes em aranhas, escorpiões, pepinos-do-mar, lagartas e, principalmente, em algumas serpentes, como as do gênero Bothrops.

Outros compostos anticoagulantes também estão presentes em secreções salivares ou exócrinas de alguns morcegos-vampiros (Desmodus rotundus Desmodus rujus). Da mesma forma, também fazem parte da estratégia alimentar de insetos hematófagos, como o Rhodnius prolixus, ou de parasitas intestinais, tais como Ancylostoma ceylanicum Ascaris.

Venenos como medicamentos: poder peçonhento

Aplicação terapêutica de antiplaquetários à base de componentes de venenos

Os inibidores da agregação plaquetária ajudam a prevenir a formação de coágulos sanguíneos. Os medicamentos a seguir têm como base componentes isolados de venenos de cobra, que foram aprovados pelo FDA (Food and Drug Administration) para a sua aplicação terapêutica:

  • Integrilin® (Eptifibatide) é um peptídeo de sete aminoácidos.
  • Aggrastat® (Tirofibana) é uma molécula pequena, um derivado não peptídico da tirosina.

Outros exemplos de medicamentos de sucesso à base de componentes de venenos

Muitos outros componentes do veneno de cobra estão atualmente envolvidos em ensaios pré-clínicos ou clínicos para uma variedade de aplicações terapêuticas.

Esses exemplos mostram que os venenos podem ser uma fonte valiosa de novos componentes importantes na descoberta de medicamentos. É clássico citar o caso dos anti-hipertensivos:

  • O Captopril® é um medicamento que pertence ao grupo dos chamados inibidores da enzima conversora da angiotensina (inibidores da ECA). Uma vez que essa enzima participa da formação da angiotensina, o inibidor Captopril atua causando um relaxamento dos vasos sanguíneos e diminuindo a pressão arterial.

O Captopril vem sendo usado nos Estados Unidos e no Reino Unido há cerca de 40 anos com sucesso e também estimulou a busca por novos medicamentos no veneno de cobra. Mostraremos mais alguns:

  • O enalapril é um bloqueador dos receptores da angiotensina II (ARB, na sua sigla em inglês) e é usado para muitos problemas cardíacos e vasculares. Por exemplo, para tratar a doença arterial coronariana, a insuficiência cardíaca, a hipertensão ou problemas renais.
  • O analgésico ziconotida (vendido sob o nome de Prialt) é derivado de um peptídeo do caracol-do-cone que atua no sistema nervoso como um poderoso analgésico.
  • O medicamento para diabetes exenatida reduz o açúcar no sangue e aumenta a produção de insulina no corpo. É baseado em um componente da saliva do monstro-de-gila, um lagarto venenoso.

Venenos como esperança para o tratamento da esclerose múltipla

Atualmente, os cientistas estão estudando medicamentos derivados da anêmona-solar. Essa espécie atordoa os camarões que caça por meio do contato com seus longos tentáculos e suas poderosas toxinas bloqueiam os canais nervosos da presa. Agora, os cientistas conseguiram sintetizar versões mais seguras do que a original.

A nova versão sintética do veneno de anêmona reverte drasticamente a paralisia que acompanha a esclerose múltipla em modelos de roedores. Testes em humanos também estão em andamento, embora seja muito cedo para dizer o quanto esse derivado de veneno será útil no longo prazo.

O veneno de cobra pode tratar o câncer?

Na busca por compostos que possam ser aplicados no tratamento do câncer, é lógico examinar o veneno de cobra, pois pode conter centenas de compostos químicos de interesse médico.

Grupos de cientistas afirmam que o veneno de algumas cobras, quando aplicado na dose adequada, pode matar tumores de mama e cólon rapidamente, mas admitem que os testes ainda são iniciais. Por enquanto, os resultados foram obtidos por meio de testes in vitro, ou seja, em culturas de células de origem humana.

Mais recentemente, foi catalogado o veneno de certas aranhas e o seu efeito no tratamento do glioblastoma, com resultados promissores. Sem dúvida, o mundo do veneno animal ainda tem muitas surpresas reservadas para nós.

Venenos como medicamentos: poder peçonhento
O exenatida é um medicamento desenvolvido a partir do veneno do monstro-de-gila.

Conforme pudemos ler nessas linhas, existem centenas de caminhos abertos quando se trata de veneno animal e pesquisa médica. Só o tempo dirá quantas dessas toxinas acabarão salvando vidas humanas.


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