Xenotransplantes: o que são e seus avanços
Escrito e verificado por veterinário e zootécnico Sebastian Ramirez Ocampo
Os xenotransplantes são procedimentos cirúrgicos nos quais são implantadas células, tecidos ou órgãos inteiros de uma espécie filogeneticamente diferente da outra. Por exemplo, de um porco para um ser humano. Há registro de que são praticados há pelo menos 300 anos, com resultados mistos que geraram polêmica na comunidade científica.
Apesar disso, especialistas na área da medicina veem o xenotransplante como uma possível solução para a atual escassez de órgãos. Descubra no conteúdo a seguir as vantagens, desvantagens e perspectivas dessa prática no futuro da saúde humana.
A escassez de órgãos humanos e a necessidade de novas soluções
Segundo dados do Observatório Mundial de Doação e Transplante, a cada ano são realizados 150 mil transplantes entre seres humanos no mundo. No entanto, em países como os Estados Unidos, as doações ainda são muito escassas, razão pela qual cerca de 17 pessoas ainda morrem por dia à espera de um transplante de órgãos vitais, como coração, fígado ou rins.
Da mesma forma, o European Directory for the Quality of Medicines and Health Services determinou que, embora em 2021, 36.000 pacientes tenham recebido um transplante, 41.000 novos pacientes foram adicionados às listas de espera.
Devido a esse problema, médicos e pesquisadores têm se interessado em usar órgãos de animais. Especialmente de suínos e primatas não humanos (NHP).
Animais usados em xenotransplante
O primeiro caso relatado de xenotransplante ocorreu em 1667, quando o médico francês Jean Baptiste Denis transfundiu sangue de cordeiro a um jovem com febre, obtendo resultados positivos. No entanto, essa prática não teve o mesmo sucesso em outros pacientes, de modo que a xenotransfusão foi proibida na França por muitos anos.
Mais tarde, em 1920, o cirurgião Serge Voronoff transplantou testículos de chimpanzés para um grupo de homens com o objetivo de aumentar sua virilidade, energia e resistência. No entanto, os benefícios não foram cientificamente comprovados.
Anos depois, entre 1963 e 1993, foram realizados vários xenotransplantes de órgãos renais, cardíacos e hepáticos de primatas para humanos. Embora a maioria dos pacientes morresse dentro de horas ou dias após o procedimento, houve um caso em que uma pessoa sobreviveu por 9 meses com um rim de chimpanzé sem complicações aparentes.
O problema dos primatas não humanos
Embora se possa pensar que os NHPs são os candidatos ideais para o xenotransplante em humanos, a realidade é que sua viabilidade como fonte de órgãos é bastante controversa. Por um lado, por serem animais em extinção, seu uso para esta prática é apresentado como antiético.
Somado a isso, existe o risco de o receptor desenvolver doenças transmitidas por primatas, devido à quantidade de informação genética que compartilhamos.
Da mesma forma, na prática, observou-se que eles não fornecem órgãos de tamanho adequado para humanos, além de serem rejeitados na maioria das vezes pelo sistema imunológico do humano receptor.
O porco, doador da era atual
Diante de tais inconvenientes, a maioria das pesquisas modernas se concentrou em outra espécie, o porco doméstico. Estes porcos, que foram submetidos a inúmeras experiências nos últimos anos, apresentam características ideais para o xenotransplante:
- Possuem semelhança anatômica e funcional com os humanos.
- Há um grande número de espécimes em todo o planeta.
- Sua reprodução é fácil e sua gestação é curta.
- Pode ser criado livre de patógenos
No entanto, apesar dos grandes avanços alcançados com a espécie, ainda existem dois grandes problemas com os suínos: a rejeição imunológica e o risco de infecção.
Os obstáculos do xenotransplante
A rejeição ocorre porque o sistema imunológico humano reconhece o órgão transplantado como um corpo estranho. Assim, gera-se uma resposta de anticorpos que se ligam às células endoteliais do enxerto buscando destruí-lo. Essa reação de rejeição pode ocorrer em questão de horas, dias ou meses.
Para resolver isso, os pesquisadores têm procurado modificar geneticamente porcos doadores, com o objetivo de enganar o sistema imunológico do receptor. Por exemplo, criar animais transgênicos que expressam genes humanos com capacidades imunomoduladoras que impedem a rejeição.
Quanto à infecção, o risco reside no contágio por patógenos específicos em tecidos suínos ou na transmissão de retrovírus alojados no genoma dos suínos. Este último pode infectar silenciosamente os humanos integrando e alterando a composição dos genes, causando doenças ou xenozoonose.
No entanto, graças a técnicas de manipulação genética, como a ferramenta CRISPR, esses retrovírus foram inativados no genoma do porco.
Estudos recentes sobre xenotransplante
Em 2022, foi realizado o primeiro transplante de coração de um porco geneticamente modificado para um ser humano com insuficiência cardíaca terminal. A princípio, não houve rejeição por parte do indivíduo receptor.
No entanto, ele morreu oito semanas após desenvolver uma infecção por herpesvírus suíno. Esse vírus, que causa a doença de Aujeszky em porcos, não pôde ser identificado em estudos anteriores ao transplante.
Por outro lado, um artigo recente publicado no The New England Journal of Medicine relatou como os rins de porcos transgênicos funcionaram bem no corpo de duas pessoas. No entanto, esse foi um estudo mais experimental e demonstrativo, pois os pacientes humanos estavam com morte cerebral.
Os xenotransplantes são uma solução possível?
Sem dúvida, a demanda de órgãos por seres humanos é um problema latente. Além disso, com o crescimento exponencial da população nos últimos anos, espera-se que a necessidade de transplantes aumente.
Embora o xenotransplante possa fornecer um suprimento ilimitado de órgãos, ainda há muitas questões que a ciência deve resolver antes de implementar essa técnica rotineiramente.
Portanto, mais pesquisas são necessárias para avaliar o xenotransplante como uma prática segura e funcional por longos períodos de tempo.
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